Em artigo, Sandro Lunard (advogado, professor da UFPR e Vice Presidente do Instituto Edésio Passos) aborda o significado do 1º de maio e as perspectivas do futuro do trabalho.
O  artigo foi publicado no Jornal Plural em 1º/05 e está disponível em: https://www.plural.jor.br/o-dia-do-trabalho-e-do-trabalhador-passado-presente-e-qual-futuro/
Confira abaixo:

O dia do trabalho e do trabalhador: passado, presente e… qual futuro?

Sandro Lunard*

“O feriado nacional do dia do trabalho foi criado pelo presidente Arthur Bernardes, com a publicação do Decreto n.º 4.859, de 26 setembro de 1924, e tinha por finalidade celebrar a “confraternidade universal das classes operárias e a comemoração dos mártires do trabalho”.

Essa data histórica evoca a memória das lutas sociais e políticas protagonizadas pelos trabalhadores e seus sindicatos, projetando para a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária, e nos oportuniza refletir sobre o passado e o futuro do trabalho.

Nesse compasso, analisar a formação das relações de trabalho no Brasil possibilita identificar um pouco a origem da nossa desigualdade social e econômica. Explico melhor: o trabalho escravo, por mais de três séculos, foi determinante para o progresso econômico e o desenvolvimento do Brasil, definido, basicamente, pela somatória de duas estratégias: a) o tráfico de seres humanos expatriados de suas origens, no caso dos escravos africanos; e b) os expropriados de suas terras e riquezas, no caso dos escravos indígenas.

Com a Lei Áurea (1888), ao menos formalmente, os escravos africanos e indígenas convertem-se em trabalhadores livres, porém sem qualquer medida de amparo ou sustento nessa transição do trabalho escravo para o livre.

Essa condição foi tratada de modo diferenciado no tocante aos imigrantes europeus, convocados para o desempenho do trabalho livre, especialmente porque convocados justamente para substituição da mão-de-obra escrava, com um desejo inconfesso de branqueamento do povo brasileiro, pois, quando aqui aportaram, a partir do fim do século XIX, contavam com a efetivada promessa da concessão de terras ou de trabalho nas fazendas.

Desse modo, o ponto de partida para o trabalho livre no Brasil define duas opções: aos escravos libertos, indefinição, desalento e miséria; aos europeus imigrados, condições materiais previamente definidas e implementadas na estratégia governamental.

Essas diferenças civilizatórias e de assimetrias sociais persistem, mesmo após a origem das relações de trabalho organizadas a partir do assalariamento contratualizado nacionalmente definido, isto é, não bastou a regulação estatal do trabalho promovida por Getúlio Vargas, nas décadas de 30/40, para superar nossas dificuldades no trato e no contrato, embora a esperança e o ânimo renovado pela Constituição Federal de 1988, não tenha completado seu projeto social integralmente.

Em linhas gerais, o conjunto de opções políticas e econômicas determinou a construção de um Brasil contemporâneo (século 20) demandante de mão-de-obra concentrada nas atividades urbanas do comércio, serviços e indústria, como também na agricultura de subsistência e agronegócio.

Aliás, não se pode esquecer outro grande empregador nacional, determinante para geração de renda local e fixação de pessoas nas mais longínquas regiões brasileiras, representado pelos governos municipais, estaduais e federais, suas estatais e seus investimentos em obras geradoras de renda e de financiamento da indústria nacional.

É inegável que, mesmo nos dias atuais, convivemos com as naturais contradições nacionais, assentadas, por um lado, em relações de trabalho modernas e promotoras do trabalho decente, com respeito e diálogo social, mas, por outro lado, adaptamo-nos e, até, naturalizamos o triste cotidiano de exploração do trabalho em condição análoga à de escravo, com assédio sexual nas empresas, discriminação nos locais de trabalho e sonegação de direitos sociais.

No tempo presente (século 21), o mundo do trabalho está atravessado por profundas e significativas transformações, cada vez mais rápidas e visíveis, sentidas externa e internamente em nosso mercado de trabalho.

Os debates atuais sobre o futuro do trabalho residem na compreensão e definição dos efeitos da “4ª Revolução Industrial”, isto é, a incorporação em larga escala de tecnologias emergentes na execução de processos de produção e organização do trabalho, com jornadas de trabalho sem limites e a redução de oferta do emprego formal ou com garantias sociais mínimas.

A emergência da contratação de serviços profissionais por aplicativos de smartphones é um dos elementos que vêm impactando o chamado “mundo do trabalho”, alterando sua forma de organização, sentidos e perspectivas.

A esse respeito, em janeiro deste ano (2019), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), marcando seu centenário de existência, tornou público o relatório mundial denominado “Trabalho para um futuro mais promissor”, produzido pela Comissão Global sobre o Futuro do Trabalho. O grupo foi definido com o objetivo de refletir os diversos aspectos e as novas forças em transformação no mundo do trabalho, fornecendo uma base analítica para fundamentar decisões governamentais e empresariais, de modo a construir uma sociedade fundada na implementação do trabalho decente e sob o primado da justiça social.

O relatório concluiu que o sentido das decisões empresariais e das opções governamentais pode impactar na melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, viabilizando oportunidade de criação de postos de trabalho qualitativamente melhores, tendo como consequência a redução da desigualdade social, particularmente aquela originada da discriminação das mulheres.

Na conclusão do referido relatório, também se aponta no sentido de possíveis soluções para o quadro de desemprego, com redução das condições de degradação do trabalho e enfrentamento da ameaça às garantias sociais, o que engloba a questão da nova realidade imposta pela robótica, pela inteligência artificial e outras tecnologias, assim como a crescente transformação dos processos produtivos impostos pelas mudanças climáticas.

Por fim, o documento sinaliza para a questão essencial em matéria de trabalho e emprego, sugerindo, para tanto, um modelo procedimental de que decisões nesse ambiente não devem ser tomadas de forma unilateral, mas ser o resultado da soma de visões compartilhadas por um amplo diálogo social tripartite (governos, empresários e trabalhadores).

Nesse sentido, a manutenção da justa medida e do equilíbrio entre a ordem econômica e social é, indiscutivelmente, um grande desafio à crença de que qualquer ordem política possa se manter intocada, caso abdique dos indispensáveis laços de coesão social e solidariedade promovidos pela promoção incessante e articulada entre a democracia social e econômica.

Assim, aprender com o passado significa projetar e redesenhar o futuro do trabalho, e tudo isso somente será viável se forem assumidas práticas inovadoras, fundadas nos velhos, mas atualíssimos, princípios fundantes da nossa sociedade baseados na solidariedade, erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais, ambientados  numa sociedade  democrática e, especialmente, que reconheça o livre mercado, desde que respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana.

Em suma, nesse dia, rememorar, refletir e enaltecer a vida dos trabalhadores desse país consiste numa resistente oração pelos direitos humanos, particularmente nesse triste quadrante da história recente nos planos nacional e mundial.

* Sandro Lunard é doutor em direito, vice-presidente do Instituto Edésio Passos e professor de Direito do Trabalho da UFPR.